Para evitar o apoio de militares e de parlamentares fisiológicos ao impeachment, o presidente põe em risco as peças mais valiosas de seu tabuleiro: Pa

O roque político de Bolsonaro

O roque, no xadrez, costuma ser um movimento defensivo. O rei deixa a posição de alvo central, que pode ser atacado pelos dois flancos, para tentar se proteger atrás de uma fileira de peões no canto do tabuleiro. Terá dali o pulmão de algumas casas, para onde poderá se deslocar caso entre em xeque, enquanto libera a torre e as demais peças para um jogo mais livre pelo miolo.

Ao iniciar nesta semana a fritura de seus dois principais ministros e cabos eleitorais, Bolsonaro fez um roque no tabuleiro político de Brasília. Escondeu-se atrás não de uma fileira de peões, mas dos militares, enquanto tenta costurar uma pinguela com as alas fisiológicas do Congresso para se proteger do xeque-mate: o impeachment.

Como no roque, a jogada de Bolsonaro se compõe de dois movimentos simultâneos. O primeiro deixou Guedes exposto. O segundo levou Moro a pedir demissão. Bolsonaro não gostaria de perder nenhum deles, mas aceitará o sacrifício de ambos, bispo e rainha, se obtiver em troca garantia de proteção. Trata-se não de demonstração de força, mas de sinal evidente da fraqueza de um governo desgastado pela Covid-19.

O recado para Guedes veio na primeira entrevista coletiva do novo ministro da Saúde, Nelson Teich, que subsituiu Luiz Henrique Mandetta. Em vez de Teich apresentar seus planos para o combate ao novo coronavírus, que o Brasil ainda aguarda com um misto de ansiedade e apreensão, o evento serviu para o general Braga Neto, ministro da Casa Civil, anunciar um novo programa de investimentos e recuperação da economia. Sem a presença nem o aval do ministro da Economia.

Pelo que se pode depreender da apresentação, desconjuntada e sem nenhum nexo econômico, trata-se de um resgate da ideia do Estado como promotor de investimentos, em áreas que o governo determina como estratégicas. É um manual que o Brasil já seguiu várias vezes na história – a última delas no governo Dilma Rousseff –, com resultados, por assim dizer, pouco encorajadores.

É importante ressalvar que o momento exige intervenção do Estado para salvar qualquer país de uma depressão. Faz todo sentido apresentar um plano econômico para isso. Não significa que o plano apresentado faça algum sentido. Econômico, não faz nenhum. Seu único sentido é político: abrir, num momento de crise, mais espaço no governo para os militares. Tanto que um general sem retrospecto no combate a epidemias assumiu o posto mais crítico para enfrentar a Covid-19: secretário-executivo do Ministério da Saúde.

Para Bolsonaro, esconder-se atrás de uma fileira de militares tem uma lógica política óbvia: evitar que eles apoiem qualquer tentativa de impeachment. A crise da Covid-19 provocou uma ruptura praticamente irreversível entre o presidente e as lideranças do Legislativo e do Judiciário. Ao ir à manifestação que pedia o golpe militar no último fim de semana, Bolsonaro mais uma vez confirmou que prefere cultivar o apoio dos mais radicais entre seus eleitores.

No quadro atual, ele precisa dos militares menos para dar um golpe – embora não seja possível descartar tal ambição – do que para evitar que se aliem aos setores que clamam pelo impeachment. Se o preço a pagar por isso for a adesão a um certo desenvolvimentismo de tom verde-oliva e a fritura de Guedes, paciência. A crise oferece pretextos de sobra para justificar o sacrifício do bispo.

Apenas o apoio da caserna, contudo, não basta. Apesar de toda a confusão que reina em Brasília – talvez até por causa dela –, continua irrisória a chance de que os militares embarquem na fantasia de golpe contra o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF) acalentada pelos acólitos de Bolsonaro. Para sobreviver no poder, portanto, ele também precisa restaurar alguma ponte com o Legislativo.

Daí o segundo movimento de seu roque: a demissão do diretor-geral da Polícia Federal (PF), Maurício Valeixo. No início do governo, Moro fez questão de pôr no cargo alguém que mantivesse os princípios da Operação Lava Jato. A indicação de Valeixo provocou uma das primeiras crises com Bolsonaro, cujo filho mais velho, o senador Flávio Bolsonaro, era alvo da investigação no Caso Queiroz.

Moro saiu vitorioso no primeiro embate. Daí em diante, viveu vários outros choques com o presidente, muito em virtude da popularidade ainda resultante da Lava Jato, que o projetava como candidato quase inevitável à sucessão em 2022 (embora ele ainda preferisse a prometida vaga no STF). Resistiu a todos eles, mas ontem decidiu pedir demissão. Sua permanência no cargo é uma incógnita.

Os motivos da fritura de Moro, em contrapartida, não são. Tirar Valeixo da PF permite enfraquecer não apenas as investigações do Caso Queiroz, mas todo o arcabouço institucional de combate à corrupção resultante da Lava Jato. É um movimento necessário para Bolsonaro consumar o casamento com as lideranças que tem namorado no Congresso, em especial o PTB de Roberto Jefferson e outros partidos do grupo conhecido como Centrão.

O objetivo de Bolsonaro com a aproximação do Centrão é solapar a liderança inequívoca exercida pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia, desde o início do governo. Com isso, tenta impor mais dificuldades a qualquer processo de impeachment. Novamente, se o preço a pagar for o sacrifício da rainha, paciência.

A postura absurda de Bolsonaro diante da Covid-19 empurrou-o para o canto do tabuleiro político. Não há diálogo com Congresso, Supremo ou governadores dos principais estados. A classe média das grandes cidades continua a bater panela contra ele toda noite. Ao contrário de outros presidentes que foram alvo da insatisfação popular, porém, Bolsonaro ainda mantém o apoio de uma ala expressiva da sociedade, que embarcou no discurso negacionista e anticientífico.

A parte mais radical desses acólitos não quer apenas o fim das quarentenas. Também desdenha a democracia e aposta num golpe de Estado. No universo da política, tal apoio é a força que lhe resta para tentar manter os militares próximos de seu governo. Enquanto isso, ensaia pôr um pé no Congresso, abrindo espaço no governo a políticos fisiológicos. Guedes e Moro se tornaram, cada um por seus motivos, empecilhos a tais movimentos. Sem eles, contudo, Bolsonaro não terá como evitar ficar ainda mais fraco.